Que horas ela volta?

Direção: Anna Muylaert

Elenco: Regina Casé, Camila Márdila, Michel Joelsas, Karine Teles e Lourenço Mutarelli.

Após o final da sessão deste maravilhoso e contemporâneo Quer horas ela volta? Perguntei-me se todo o contexto que o filme engloba seria o suficiente para despertar um pouco de consciência social em algumas classes sociais numa época de ódio crescente contra os menos desfavorecidos - como visto nos panelaços espalhados pelas principais capitais. Como se tal situação que se encontra a maior parte da população fosse fruto da falta de determinação ou esforço na vida, e não um reflexo de uma cruel desigualdade secular que infelizmente as pessoas insistem em desconsiderar em suas opiniões ao discutir nossa atual situação política e social. 

Nada mais representativo ao conhecermos a própria Val (Regina Casé, Sublime) trabalhando como doméstica durante anos numa casa de classe média alta do Morumbi, cuja presença é tão marcante que acaba por criar uma inversão de papéis ao substituir a figura materna com o jovem Fabinho (Joelsas) - um adolescente cujas prioridades são drogas e virgindade. Tal família moderna possui sérios problemas de relacionamento e não têm a capacidade de perceber que o único resquício de afeto vem justamente daqueles que eles mais ignoram, abrindo espaço para uma discussão que vai além de uma luta de classe, mas sim uma crítica ao nosso relacionamento (ou falta dele) no núcleo familiar e suas consequências. Contudo a rotina de todos será modificada com a chegada de Jéssica (Márdila), filha de Val que chega a capital para prestar vestibular e acabar morando com a família mesmo a contra gosto da mãe que não admite esta mistura, por achar um ato de desrespeito.

A direção de Anna Muylaert é contundente ao tratar este cenário, focando em Val inicialmente de costas para criar uma falta de identidade de todo um grupo de pessoas como não fossem merecedoras de algum tipo de empatia ou se vivessem em um mundo a parte. Como estes pessoas não fossem brasileiras e não merecessem melhores condições e oportunidades que não fosse uma mão de obra barata e um quartinho nos fundos da casa ou usando presentes dados pelos patrões apenas para servir com álibi social em suas consciências - como podemos ver no figurino de Val que na maior parte do filme surge usando camisas de faculdades americanas compradas por alguns dólares em qualquer loja de Freeshop.

O roteiro da própria diretora cria algumas interessantes armadilhas para o preconceito do público na personagem Bárbara (Teles), que inicialmente se mostra uma amável e benevolente patroa, mas que refuta qualquer aproximação de Val que prejudique sua imagem; a ponto de usar adjetivações com o intuito de humilhar indiretamente a doméstica e dar forma à verdadeira face de um tipo de comportamento que infelizmente não incomum nos dias de hoje com uma profissão tradicionalmente discriminada. Assim Regina Casé tem um desempenho que faz jus aos prêmios que o filme conquistou: Minimalista e extremamente expressiva com suas nuances e comentários cômicos que em nenhum momento destoam do contexto, por serem feitos de maneira contida por uma atriz acostumada a um humor mais estridente. Sua personagem é um exemplo perfeito de um mulher batalhadora e humilde que sente a necessidade de confortar as pessoas que a cerca antes propriamente aos seus conflitos pessoais.

A personagem Jéssica é outro ponto primordial para criar certa identificação com a causa. Como ela representa uma geração que ao contrário da anterior que se habituou a servir, ela não aceita este domínio de classe e seu comportamento atrevido é perfeito para testar mais uma vez os nossos dogmas, como por exemplo, no fato de Jéssica não aceitar que os patrões preteriram alocar Val em um quarto pequeno nos fundo e distante de todos em vez do confortável quarto de hóspede (mesmo sendo considerada um membro da família). Contudo, nada mais revoltante constatar a surpresa desta elite ao saber que Jessica irá presta vestibular para uma difícil faculdade, como se uma jovem nordestina não pudesse ter oportunidades ou capacidade para tal (algo que vemos diariamente nas redes sociais com uma geração de reacionários e hipócritas que não aceitam que o país avançou com medo de terem seus privilégios ameaçados, denunciando a própria incapacidade de aproveitar as condições favoráveis que sempre tiveram).

Esta desproporcional luta de classes é támbém muitíssima bem retratada de maneira ironicamente sutil como podemos constar na cena em que Bárbara é obrigada a servir Jéssica (em um copo de plástico, claro), entretanto ao fazê-lo é evidente que por dentro podemos interpretar algo como: pode aproveitar, mas quero que saiba seu lugar na sociedade é abaixo de mim (Ou quando determinado momento que Val oferecesse um presente a Bárbara, surge uma metáfora perfeita que independente da classe ou cor, todos são integrantes de um mesmo sistema, sem distinção).

E quanto a resposta para pergunta feita no início do texto, seria redundância dizer que temos muito trabalho para tornar nossa sociedade um pouco mais justa, pois ao sair da sessão uma espectadora (classe média alta) disse algo revoltante tanto cinematograficamente quanto contextualmente : "Tirando a Regina Casé o filme não tem nada" . Tal comentário prova que além de não ter prestado a atenção no filme e no seu contexto - que por si só é algo triste de constatar - confirma (pelo menos inconscientemente) a mentalidade de uma minoria de que uma brasileira pobre e sem oportunidades ainda incomoda outros privilegiados - e igualmente brasileiros - quando conseguem uma oportunidade melhor e uma vida um pouca mais digna.

Vida esta que durante anos foi apenas um sonho.

Cotação 4/5